projeto de pesquisa

Carta para óculos

Querido Óculos,

escrevo esta carta para te dizer e expressar, pela primeira vez, o que realmente sinto por ti. Há muito tempo você está na minha vida e a nossa relação nem sempre foi das melhores, por isso preciso te dizer o quanto você é importante pra mim. 

Gosto de como você se encaixa no meu corpo, o seu jeito delicado de me vestir e me galantear, mas principalmente gosto do novo mundo que você me apresenta. Você faz tudo parecer mais bonito, sua sensatez permite que eu veja as coisas com mais clareza. Tenho que admitir que nesse mundo tão sem sentido tem horas que prefiro não ver nada. Mas sinto sua falta assim que você se afasta, aos pouco me acostumo com a ausência de brilho ao meu redor quando você não está. 

O que mais me encanta nessa nossa relação, é como você me conquista tão facilmente, tão sutilmente e, num piscar de olhos, já estou entregue. O casamento é algo que me dá medo, esse nosso eterno flerte, esse nosso namoro sem compromisso disfarça minha completa dependência em você. Prefiro que a gente continue assim. Basta um carinho seu e eu mergulho no seu olhar profundo e deixo você me guiar com a certeza que o seu olhar melhora o meu. 

Com amor 

Maíra. 

acordar coisa

acordar coisa não é como acordar inseto, é bem mais pragmático.

um dia você acorda com dores musculares, no outro acorda precisando ser lixado. polido. esfregado. 

um dia você acorda de mau humor, no outro acorda no lugar errado.

um dia com uma fome do cão, no outro acorda pronto.

se você falar comigo, posso parecer não escutar. ou não responder.

coisa não conversa.

posso ser mexido, arrumado, ser jogado. 

nos dias que acordo coisa, posso trabalhar bastante.

repetir, repetir, até ficar diferente.

nesses dias eu também me relaciono. 

se você não mudar minha trajetória, faço o que for preciso.

o que você precisar. 

nesses dias passo desapercebido.

recebo e ignoro seu afeto.

não me percebo.

não olho no espelho.

não penso em você. 

foto: joao saenger

Penumbra

No final de maio oferecemos uma série de oficinas com o objetivo de desenvolver a pesquisa Geringonça junto com outras pessoas. Essas oficinas resultaram na produção de vídeos. Penumbra I e II são os primeiros dessa série, no qual participam os alunos das oficinas de Pesquisa Acrobática, Composição Cênica e Vídeo Mobile em uma produção conjunta.

Nas oficinas de pesquisa acrobática e composição trabalhamos movimento e a relação com objetos. 

Na oficina de vídeo, os parceiros COMOVA deram ferramentas para a criação de vídeos com telefones móveis.

Confiram o resultado!

Participaram da criação das cenas: Bruna Dalbosco/ Bruna Nunes/ Bruna Pratesi/ Júlia Giesbrecht/ Matheus Sena/ Myka Dias/ Sarah Dornelles/ Nanci Cravinho/ Nayara Silva/ Renata Rinaldi/ Yllyusha Montezuma
 

Parecia dança

Tomou aquela menina, já um pouco imóvel nos braços, e a vestiu como a coisa mais linda ou necessária que poderia integrar seu corpo. Seu suor tomava aquele corpo de mulher, como a madeira banhada em verniz que se enche de brilho.

Parecia lindo... Parecia dança...

Meus olhos por alguns momentos, não sabiam mais a quem dar a importância do olhar. Na mulher que dançava como quem ama o vento, ou na criança de pouca mobilidade, que sutilmente remetia a imagem de um objeto de madeira. E na gota de suor que escorreu ali, quase despercebida do queixo da dançarina, me trouxe a sensação de que o toque da gota, de encontro com aquele ser envernizado, o faria mais vivo e gentil. Depois de percebido a importância dessa criança, a dançarina encontrava paz em sua movimentação, sentou se naquilo, como se sentasse num banco de descanso, que levemente buscava afeto. Talvez, de uma pequena lembrança do corpo e suor, que lhe trazia vida nas manhãs de sextas feira.

 

Foto de João Saenger

O artista de circo é um domador de objetos

As discussões sobre como o objeto se relaciona com o corpo suscitadas nos últimos ensaios me fez pensar em como o circo traz essa questão, tradicionalmente e de forma geral *.

 

A relação do artista de circo com seu aparelho remete-se, simbolicamente, às origens do circo moderno: o circo de cavalinhos. Nos treinos diários, o aparelho deve ser domado como um domador cuida de seu animal - a partir de seu próprio corpo, em um jogo dançado entre corpo e, aqui, no caso, o objeto.

 

O corpo se transforma no contato diário com o aparelho, feito de aço, cordas de algodão, ferro, madeira ou outros materiais até mais tecnológicos, mas não mais gentis. As dores sentidas nos primeiros contatos com o objeto vão diminuindo a partir da criação de um diálogo entre corpo e matéria. O objeto laceia, gasta, se flexibiliza a partir do contato com a pele e a pele se endurece, agarra, se adapta. Esse encaixe é preciso e delicado e faz parte de uma construção diária de treinos disciplinados e íntimos com o objeto. Qualquer mudança faria o aparelho parecer um estranho.

 

Essa fidelidade do artista ao seu objeto (que pode ser um trapézio, uma bengala, uma clave de malabarismo, uma cadeira, etc) tem uma forte relação com a segurança da performance. Essa relação pode ser entendida de forma racional - quanto mais íntima e diária é o contato do artista com o aparelho, menor as chances de erro, ou ainda, de forma simbólica - o objeto circense figura como o fio de separação entre a vida e a morte.

 

Essa intimidade diária com o fio da vida é o treinamento do artista circense. Um corpo moldado pela presença constante do risco. Um objeto selvagem dominado pelo artista domador. Nesse processo de docilização do aparelho não há espaço para táticas agressivas. A única possibilidade é a total entrega, fazendo com que a persistência, o toque diário do corpo no objeto transformem suas estruturas, desgastando-o, ou então, a precisão de ritmo, intensidade e trajetória da manipulação promova uma sincronia milimétrica entre o movimento do artista e o do objeto. Uma dança a dois.

 

Essa reflexão me evoca a imagem das grandes ou pequenas erosões naturais, de contato da água com as rochas, nas quais um movimento mínimo da água constrói paisagens raríssimas. Grandes ressacas do mar na encosta ou gotas singelas nas estalactites. Água mole em pedra dura tanto bate até que vira circo.

* Considerando aqui algumas das modalidades circenses, as que o aparelho circense é central é indispensável à própria performance. 

Referência

Maleval, Martine. O Objeto: O Nó Górdio em: O Circo no Risco da Arte. Wallon, Emannuel, 2009.

A coisa

Tem uma forma tridimensional. Um poliedro, composto de vários retângulos. Pesa aproximadamente 500 g. Tem dois lado planos e quatro lados abaulados. Qualquer lado te recebe, te aceita. Está sempre aberto para novas ideias. É rígido e tem uma simplicidade que me atrai. É calmo e paciente. Dialoga com firmeza, mas com doçura. Se for jogado na água afunda, devido à sua densidade. Se lixar muito fica liso e pode até desaparecer. É pau para toda obra. Ipê. Serve para apoiar as mão de uma pessoa em sentido invertido. É bem rígido. Sua cor é marrom claro. Para pregá-lo deve-se utilizar parafuso, pois não aceita prego com facilidade. Aguenta tudo, sempre disposto a dar apoio. Para ser colado recomenda-se utilizar cola branca. Não tem coração. Precisa de um tratamento contra pragas. Não é único e pode ser reproduzido facilmente, embora não seja fácil de encontrar e não seja vendido em lojas. Por sorte, não precisa afirmar a sua existência. Não gosta muito de falar, mas escuta tudo como um amigo atencioso ou um psicanalista que te acolhe, te recebe, absorve tudo o que você tiver para dar e no final sorri. Inerte, só se move por impulsão.